domingo, 30 de março de 2008

Poemas de Manuel Bandeira


UCSal - Literatura Brasileira IV


De “Carnaval

1- Bacanal

Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?....
- Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!

A lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu estático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!


2- Os sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- ”Meu pai foi à guerra!”
- “Não foi”- “Foi” - “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - “Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...”

Urra o sapo-boi:
- ”Meu pai foi rei” – “Não foi!”
- “Não foi”- “Foi” - “Não foi!”.

Branda em um assomo
O sapo- tanoeiro:
- “A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.”

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- “Sei!” - “Não sabe!” - “Sabe!”.

Longe desta grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugido do mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluça tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...


De “Libertinagem

3- Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestação de apreço [do sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de [cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero saber do lirismo que não é libertação.


4- Nova poética

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina [passa um caminhão, salpicando-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho:
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que [envelheceram sem maldade.


Fonte:
*BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio; 1982. (Coleção Sagarana – Vol.85)
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2 comentários:

Carlos Vilarinho disse...

"Nova poética" tem a ver com "lodaçal macadame"

Carlos Vilarinho disse...

Mesmo sendo diferentes "Modernidade" "Modernismo", distintos, o poema mostra um rompimento do poeta com aquele instante "comportadinho". Como o "halo" que caiu lá na lama do macadame e o poeta o largou lá...