quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Carlos Drummond de Andrade

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Poemas de
Carlos Drummond de Andrade*


DE “ALGUMA POESIA” (1930)


1- POLÍTICA LITERÁRIA

A Manuel Bandeira

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.



2- IGREJA

Tijolo
areia
andaime
água
tijolo.
O canto dos homens trabalhando trabalhando
mais perto do céu
cada vez mais perto
mais
- a torre.

E nos domingos, a litania dos perdões, o murmúrio das invocações
O padre que fala do inferno
sem nunca Ter ido lá.
Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.
A manhã pinta-se de azul.
No adro ficou o ateu
no alto fica Deus.
Domingo...
Bem bão! Bem bão!
Os serafins, no meio, entoam quirieleisão.



3- POEMA DO JORNAL


O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensangüentada grita
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.



4- CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras.
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.



5- QUADRILHA


João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernades,
Que não tinha entrado na história.



DE “SENTIMETO DO MUNDO” (1940)


6- TRISTEZA DO IMPÉRIO

Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
Mensagem poética do povo brasileiro
“Su-bo a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros,
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos
arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático.



7- MORRO DA BABILÔNIA

À noite, do morro
Descem vozes que criam o terror
(terror urbano, cinqüenta por cento de cinema,
e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral)

Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro,
o quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Alguns, chumbados, morreram.
O morro ficou mais encantado.

Mas as vozes do morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
que domina os ruídos da pedra e da folhagem
e desce até nós, modesto e recreativo,
como uma gentileza do morro.



8- CONRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



9- MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho os meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a morna realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

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