quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Jorge de Lima

.
.
Poemas de Jorge de Lima

DE “XIV ALEXANDRINOS”


1- A voz da igrejinha

E o sino da Igrejinha com voz fina de menina
tem dlins-dlins
para o batismo dos pimpolhos.

Para os mortos: devagar – DLIM-DLIM...
é como um choro de menino, compassado
sem
fim.

Dlin-dlins para as manhãs loucas de luz,
para as tardinhas que são como velhinhas
passo tardo, xale preto, corcundinhas...

As andorinhas conhecem esses dlins-dlins
e vêm
ouvi-los no verão.
As ave-marias vêm
ouvi-los ao sol-pôr...
E a estrela Vésper
atrás da torre,
e entre a neblina
ouve quieta: dlim, dlim, dlim...

E há dlins-dlins de esperança,
de venturas de saudades e de fé...

Todo o pulsar da vila:
virgens que morrem, virgens que casam...
Viático...
Novenas...
Comunhões...
E nas missas domingueiras
que alegria, que repiques argentinos
aos namoros das mocinhas...
Casamentos...
Batizados...
Agonias...
Meu deus! Dlins-dlins para os que morrem...
Dlim-dlim



3- Boneca de pano

Boneca de pano dos olhos de conta,
vestida de chita
cabelo de fita
cheinha de lã.

De dia, de noite, os olhos abertos,
olhando os bonecos que sabem marchar,
calungas de mola que sabem pular.
Boneca de pano que cai:
não se quebra, que custa um tostão.
Boneca de pano das meninas infelizes que
são guias de aleijados, que apanham pontas
de cigarros, que mendigam nas esquinas, coitadas!
Boneca de pano de rosto parado como essas [meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã. –
Os olhos de conta caíram, Ceguinha
rolou na sarjeta. O homem do lixo a levou,
coberta de lama, nuinha,
como quis Nosso Senhor.



DE “NOVOSPOEMAS”


3- Essa Negra Fulô

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
- Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
em abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou”.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?

- Ah! foi você quem roubou!
Ah! foi você quem roubou!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas,
cadê meu cinto, meu broche,
cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você quem roubou!
Ah! foi você quem roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah Foi você que roubou,
foi você, negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


DE “POEMAS ESCOLHIDOS”


4- Mulher proletária

Mulher proletária – única fábrica
que o operário tem, (fábrica de filhos)
tu
na sua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês
Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar teu proprietário.


DE “POEMAS NEGROS”


5- História

Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio negreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou.
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber;
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga,
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado..



6- Olá! Negro

Os netos de teus mulatos e de teus cafusos
e a quarta e quinta gerações de teu sangue
sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações destas gerações quando apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A.,
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de rodos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!
E és tu que alegras com os teus jazzes,
com os teus songs, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreendiam que tu ias rir!
E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a
tua bondade
mudariam a alma branca cansada de todas as
ferocidades!

Olá, Negro! Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi
Que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,
Que cantaste para o Sinhô dormir,
Que te revoltaste também contra o Sinhô;
Quantos séculos há passado
E quantas passarão sobre a tua noite,
Sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas alegrias!

Olá, Negro! Olá, Negro!

Negro que foste para o algodão de U.S.A.,
ou que vieste para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura à
Olá, Negro!
Negro, ó antigo proletário sem perdão,
Proletário bom,
Proletário bom!
Blues,
Jazzes,
Songs

Lundus...
Apanhavam com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco
ficar bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos
com teus jazzes,
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será tua gargalhada que
vem vindo?

Olá, Negro! Olá, Negro!
.
.

Um comentário:

Maria Aparecida Romboli Tavares disse...

Lindos!!! Jorge de Lima!!! - A voz da igrejinha traz tanto e tanto do romance Alegria Breve, da literatura portuguesa. Saudade dos meus Mestres Doracy Camargo Borges e Nelson Borges que, com muito amor, fortaleceram e enriqueceram meu amor pela Literatura