quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Mário de Andrade

.
.
Poemas de Mário de Andrade*


1- Inspiração

Onde até na força do verão havia tempestades de ventos
e frios de crudelíssimo inverno

- Fr. Luís de Souza

São Paulo! Comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegância sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon ... Algodoal...

São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!



2- O trovador

Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!



3- O rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
saírem de mãos dadas do Congresso...
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos salvadores do meu estado amado!...

Desciam, inteligentes, de mãos dadas
entre o trepidar dos taxis vascolejantes,
a rua Marechal Deodoro...

Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos heróis do meu estado amado!...

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos...
Emigram os futuros noturnos...
E verde, verde, verde!...
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos
Mudaram-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhes os cornos, descem-lhes as barbinhas...

E vi que os chapéus altos do meu estado amado,
com os triângulos de madeira no pescoço,
nas verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde
se punham a pastar
rente ao palácio do senhor presidente...
Oh! minhas alucinações!



4- Tietê

Era uma vez um rio...
Porém os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais esperiamente!

Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição...
E as gigantescas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho...

Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...
Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!
Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...

- Nadador! vamos partir pela via dum Mato Grosso?
- Io! Mai!... (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare com la Rute.



5- Paisagem n. 1

Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
Um tralálá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?!
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozonho arrebitado
Dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca...



6- Ode ao burgês

Eu insulto o burguês! O burguês níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os heróis lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre sol.

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Padaria suíssa! Morte viva ao Adriano!
“- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos?
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelo nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos sêcos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fóra! Fu! Fora o bom burguês!...



7- Domingo

Missas de chegar tarde, em rendas,
e dos olhares acrobáticos...
Tantos telégrafos sem fio!
Santa Cecília regurgita de corpos lavados
e de sacrilégios picturais...
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote no “Confiteor”... Contrastar!
- Futilidade, civilização...

Hoje quem joga?... O Paulistano
Para o Jardim América das rosas e dos pontapés!
Friedenreich fez goal! Córner! Que juiz!
Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô...
E o meu xará maravilhoso!...
- Futilidade, civilização...

Mornamente em gasolinas... Trinta e cinco contos!
Tem dez milréis? vamos ao corso...
E filar cigarros a quinzena inteira...
Ir ao corso é lei. Viste Marília?
E Fílis? Que vestido: pele só!
Automóveis fechados... Figuras imóveis...
O bocejo do luxo... Enterro.
E também as famílias dominicais por atacado,
entre os convenientes perenemente...
- Futilidade, civlização...

Central. Drama de adultério.
A Bertini arranca os cabelos e morre.
Fugas... Tiros... Tom Mix!
Amanhã fita alemã... de beiços..
As meninas mordem os beiços pensando em fita alemã...
As romas de Petrônio...
E o leito virginal.... Tudo azul e branco!
Descansar... Os anjos... Imaculado!
As meninas sonham masculinidades...
- Futilidade, civilização...



8- Anhangabaú

Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora...
Oh larguezas dos meus itinerários!...
Estátuas de bronze nu correndo eternamente,
num parado desdém pelas velocidades...
O carvalho votivo escondido nos orgulhos
do bicho de mármore parido no Salon...
Prurido de estesias perfumando em rosais
o esqueleto trêmulo do morcego...
Nada de poesia, nada de alegrias!...

E o contraste boçal do lavrador
que sem amor afia a foice...

Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,
Onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?
“Meu pai foi rei!
- Foi. – Não foi. – Foi. – Não foi.”
Onde as tuas bananeiras?
Onde o teu rio frio encanecido pelos nevoeiros,
Contando histórias aos sacis?...

Meu querido palimpsesto sem valor!
Crônica em mau latim
Cobrindo uma écogla que não seja de Virgílio!...



9- Paisagem n. 4

Os caminhões rodando, as carroças rodando,
Rápidas as ruas se desenrolando,
Rumo surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...

Na confluência o grito inglês do São Paulo
[Railway...
Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do
[café!...
As quebrs, as ameaças, as audácias superfinas!...
Fogem os fazendeiros para o lar...
Muito ao longe o Brasil com seus braços
[cruzados...
Oh! as indiferenças maternais...

Os caminhões rodando, as carroças rodando,
rápidas as ruas se desenrolando,
Rumo surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...

Lutar!
A vitória de todos os sozinhos!...
As bandeiras e os clarins dos armazéns abarrotados...
Hostilizar!... Mas as ventaneiras dos braços cruzados!...

E o coração com os próprios dedos!
Mutismos presidenciais para trás!

Ponhamos os (Vitória) colares de presas inimigas!
Enguirlandemo-nos de café-cereja!
Taratá! e o peã de escárnio para o mundo!

Oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!
.
.

Nenhum comentário: