quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Mário de Andrade

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Poemas de Mário de Andrade*


1- Inspiração

Onde até na força do verão havia tempestades de ventos
e frios de crudelíssimo inverno

- Fr. Luís de Souza

São Paulo! Comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegância sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon ... Algodoal...

São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!



2- O trovador

Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!



3- O rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
saírem de mãos dadas do Congresso...
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos salvadores do meu estado amado!...

Desciam, inteligentes, de mãos dadas
entre o trepidar dos taxis vascolejantes,
a rua Marechal Deodoro...

Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos heróis do meu estado amado!...

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos...
Emigram os futuros noturnos...
E verde, verde, verde!...
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos
Mudaram-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhes os cornos, descem-lhes as barbinhas...

E vi que os chapéus altos do meu estado amado,
com os triângulos de madeira no pescoço,
nas verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde
se punham a pastar
rente ao palácio do senhor presidente...
Oh! minhas alucinações!



4- Tietê

Era uma vez um rio...
Porém os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais esperiamente!

Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição...
E as gigantescas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho...

Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...
Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!
Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...

- Nadador! vamos partir pela via dum Mato Grosso?
- Io! Mai!... (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare com la Rute.



5- Paisagem n. 1

Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
Um tralálá... A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?!
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozonho arrebitado
Dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca...



6- Ode ao burgês

Eu insulto o burguês! O burguês níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os heróis lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre sol.

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Padaria suíssa! Morte viva ao Adriano!
“- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos?
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelo nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos sêcos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fóra! Fu! Fora o bom burguês!...



7- Domingo

Missas de chegar tarde, em rendas,
e dos olhares acrobáticos...
Tantos telégrafos sem fio!
Santa Cecília regurgita de corpos lavados
e de sacrilégios picturais...
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote no “Confiteor”... Contrastar!
- Futilidade, civilização...

Hoje quem joga?... O Paulistano
Para o Jardim América das rosas e dos pontapés!
Friedenreich fez goal! Córner! Que juiz!
Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô...
E o meu xará maravilhoso!...
- Futilidade, civilização...

Mornamente em gasolinas... Trinta e cinco contos!
Tem dez milréis? vamos ao corso...
E filar cigarros a quinzena inteira...
Ir ao corso é lei. Viste Marília?
E Fílis? Que vestido: pele só!
Automóveis fechados... Figuras imóveis...
O bocejo do luxo... Enterro.
E também as famílias dominicais por atacado,
entre os convenientes perenemente...
- Futilidade, civlização...

Central. Drama de adultério.
A Bertini arranca os cabelos e morre.
Fugas... Tiros... Tom Mix!
Amanhã fita alemã... de beiços..
As meninas mordem os beiços pensando em fita alemã...
As romas de Petrônio...
E o leito virginal.... Tudo azul e branco!
Descansar... Os anjos... Imaculado!
As meninas sonham masculinidades...
- Futilidade, civilização...



8- Anhangabaú

Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora...
Oh larguezas dos meus itinerários!...
Estátuas de bronze nu correndo eternamente,
num parado desdém pelas velocidades...
O carvalho votivo escondido nos orgulhos
do bicho de mármore parido no Salon...
Prurido de estesias perfumando em rosais
o esqueleto trêmulo do morcego...
Nada de poesia, nada de alegrias!...

E o contraste boçal do lavrador
que sem amor afia a foice...

Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,
Onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?
“Meu pai foi rei!
- Foi. – Não foi. – Foi. – Não foi.”
Onde as tuas bananeiras?
Onde o teu rio frio encanecido pelos nevoeiros,
Contando histórias aos sacis?...

Meu querido palimpsesto sem valor!
Crônica em mau latim
Cobrindo uma écogla que não seja de Virgílio!...



9- Paisagem n. 4

Os caminhões rodando, as carroças rodando,
Rápidas as ruas se desenrolando,
Rumo surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...

Na confluência o grito inglês do São Paulo
[Railway...
Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do
[café!...
As quebrs, as ameaças, as audácias superfinas!...
Fogem os fazendeiros para o lar...
Muito ao longe o Brasil com seus braços
[cruzados...
Oh! as indiferenças maternais...

Os caminhões rodando, as carroças rodando,
rápidas as ruas se desenrolando,
Rumo surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...

Lutar!
A vitória de todos os sozinhos!...
As bandeiras e os clarins dos armazéns abarrotados...
Hostilizar!... Mas as ventaneiras dos braços cruzados!...

E o coração com os próprios dedos!
Mutismos presidenciais para trás!

Ponhamos os (Vitória) colares de presas inimigas!
Enguirlandemo-nos de café-cereja!
Taratá! e o peã de escárnio para o mundo!

Oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!
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Oswald de Andrade

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Poemas de Oswald de Andrade



1- Escapulário

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A poesia de Cada Dia


HISTÓRIA DO BRASIL


Pero Vaz de Caminha


2- A descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava de Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra



3- As meninas da gare

Eram três ou quaro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha


Frei Vicente de Salvador


5- Prosperidade de São Paulo

Ao redor desta vila
Estão quatro aldeias de gentio amigo
Que os padres da Companhia doutrinam
Fora outro muito
Que cada dia desce do sertão


JMPS (da cidade do Porto)


6- Vício da fala

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
POEMAS DA COLONIZAÇÃO



7- A transação

O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café



8- O gramático

Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou



9- 3 de maio

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi



10- Nova Iguaçu

Confeitaria Três Nações
Importação e Exportação
Açougue Ideal
Leiteria Moderna
Café do Papagaio
Armarinho União
No país sem pecados


POSTE DA LIGHT


11- Jardim da luz

Engaiolaram o resto dos macacos
Do Brasil
Os repuxos desfalecem como velhos
Nos lagos
Almofadinhas e soldados
Gerações cor-de-rosa
Pássaros que ninguém vê nas árvores
Instantâneos e cervejas geladas
Famílias



12- A Europa curvou-se ante o Brasil

7 a 2
3 a 1
A injustiça de Cette
4 a 0
2 a 1
2 a 0
3 a 1
e meia dúzia na cabeça dos portugueses



13- Linha do escuro

É fita de risada
A criançada hurla como o vento
Mas os cotovelos se encontram
Se acotovelam e se apalpam

Mãos descem na calada da lua quadrada
Enquanto a orquestra cavalos e letreiros galopam

Entre saias uma lixa humana se arredonda
Mas quando amanhece
A mulher qualquer
Desaparece



14- Pronominais
­
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro


ROTEIRO DAS MINAS


15- Documental

É o Oeste no sentido cinematográfico
Um pássaro caçoa do trem
Maior do que ele
A estação próxima chama-se Bom Sucesso
Florestas colinas cortes
E súbito a fazenda nos coqueiros
Um grupo de meninos entra no filme



16 - Longo da linha

Coqueiros
Aos dois
Aos três
Aos grupos
Altos
Baixos


LÓIDE BRASILEIRO


17- Canto de regresso à pátria

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
.
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Jorge de Lima

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Poemas de Jorge de Lima

DE “XIV ALEXANDRINOS”


1- A voz da igrejinha

E o sino da Igrejinha com voz fina de menina
tem dlins-dlins
para o batismo dos pimpolhos.

Para os mortos: devagar – DLIM-DLIM...
é como um choro de menino, compassado
sem
fim.

Dlin-dlins para as manhãs loucas de luz,
para as tardinhas que são como velhinhas
passo tardo, xale preto, corcundinhas...

As andorinhas conhecem esses dlins-dlins
e vêm
ouvi-los no verão.
As ave-marias vêm
ouvi-los ao sol-pôr...
E a estrela Vésper
atrás da torre,
e entre a neblina
ouve quieta: dlim, dlim, dlim...

E há dlins-dlins de esperança,
de venturas de saudades e de fé...

Todo o pulsar da vila:
virgens que morrem, virgens que casam...
Viático...
Novenas...
Comunhões...
E nas missas domingueiras
que alegria, que repiques argentinos
aos namoros das mocinhas...
Casamentos...
Batizados...
Agonias...
Meu deus! Dlins-dlins para os que morrem...
Dlim-dlim



3- Boneca de pano

Boneca de pano dos olhos de conta,
vestida de chita
cabelo de fita
cheinha de lã.

De dia, de noite, os olhos abertos,
olhando os bonecos que sabem marchar,
calungas de mola que sabem pular.
Boneca de pano que cai:
não se quebra, que custa um tostão.
Boneca de pano das meninas infelizes que
são guias de aleijados, que apanham pontas
de cigarros, que mendigam nas esquinas, coitadas!
Boneca de pano de rosto parado como essas [meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã. –
Os olhos de conta caíram, Ceguinha
rolou na sarjeta. O homem do lixo a levou,
coberta de lama, nuinha,
como quis Nosso Senhor.



DE “NOVOSPOEMAS”


3- Essa Negra Fulô

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
- Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
em abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou”.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?

- Ah! foi você quem roubou!
Ah! foi você quem roubou!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas,
cadê meu cinto, meu broche,
cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você quem roubou!
Ah! foi você quem roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah Foi você que roubou,
foi você, negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


DE “POEMAS ESCOLHIDOS”


4- Mulher proletária

Mulher proletária – única fábrica
que o operário tem, (fábrica de filhos)
tu
na sua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês
Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar teu proprietário.


DE “POEMAS NEGROS”


5- História

Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio negreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou.
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber;
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga,
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado..



6- Olá! Negro

Os netos de teus mulatos e de teus cafusos
e a quarta e quinta gerações de teu sangue
sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações destas gerações quando apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A.,
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de rodos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!
E és tu que alegras com os teus jazzes,
com os teus songs, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreendiam que tu ias rir!
E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a
tua bondade
mudariam a alma branca cansada de todas as
ferocidades!

Olá, Negro! Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi
Que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,
Que cantaste para o Sinhô dormir,
Que te revoltaste também contra o Sinhô;
Quantos séculos há passado
E quantas passarão sobre a tua noite,
Sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas alegrias!

Olá, Negro! Olá, Negro!

Negro que foste para o algodão de U.S.A.,
ou que vieste para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura à
Olá, Negro!
Negro, ó antigo proletário sem perdão,
Proletário bom,
Proletário bom!
Blues,
Jazzes,
Songs

Lundus...
Apanhavam com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco
ficar bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos
com teus jazzes,
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será tua gargalhada que
vem vindo?

Olá, Negro! Olá, Negro!
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Carlos Drummond de Andrade

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Poemas de
Carlos Drummond de Andrade*


DE “ALGUMA POESIA” (1930)


1- POLÍTICA LITERÁRIA

A Manuel Bandeira

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.



2- IGREJA

Tijolo
areia
andaime
água
tijolo.
O canto dos homens trabalhando trabalhando
mais perto do céu
cada vez mais perto
mais
- a torre.

E nos domingos, a litania dos perdões, o murmúrio das invocações
O padre que fala do inferno
sem nunca Ter ido lá.
Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.
A manhã pinta-se de azul.
No adro ficou o ateu
no alto fica Deus.
Domingo...
Bem bão! Bem bão!
Os serafins, no meio, entoam quirieleisão.



3- POEMA DO JORNAL


O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensangüentada grita
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.



4- CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras.
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.



5- QUADRILHA


João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernades,
Que não tinha entrado na história.



DE “SENTIMETO DO MUNDO” (1940)


6- TRISTEZA DO IMPÉRIO

Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
Mensagem poética do povo brasileiro
“Su-bo a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros,
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos
arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático.



7- MORRO DA BABILÔNIA

À noite, do morro
Descem vozes que criam o terror
(terror urbano, cinqüenta por cento de cinema,
e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral)

Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro,
o quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Alguns, chumbados, morreram.
O morro ficou mais encantado.

Mas as vozes do morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
que domina os ruídos da pedra e da folhagem
e desce até nós, modesto e recreativo,
como uma gentileza do morro.



8- CONRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



9- MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho os meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a morna realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.